Pelo espaço ímpar que a Revista Diagnóstico &
Tratamento tem proporcionado à publicação
de artigos sobre homeopatia e acupuntura, venho através
desta carta discorrer sobre alguns artigos publicados
recentemente no periódico The Lancet, que questionam a
eficácia clínica da homeopatia.
A título de esclarecimento, importa citar que a homeopatia,
em seu contexto epistemológico, se fundamenta em
princípios distintos da medicina convencional: aplicação do
princípio de cura pela similitude, empregando doses infinitesimais
de substâncias que, ao terem sido experimentadas
previamente em pessoas sadias, apresentaram sintomas semelhantes
aos do indivíduo doente. Na aplicação terapêutica
desses pressupostos, valoriza a individualidade humana,
elegendo, dentre os milhares de substâncias experimentadas,
aquela que englobe a “totalidade de sintomas característicos
de cada paciente” (nos aspectos psíquicos, emocionais, gerais
e clínicos), empregando, para um mesmo tipo de doença,
medicamentos distintos para cada indivíduo enfermo.
Trabalhos desenvolvidos nas últimas décadas nas
áreas da pesquisa básica e da pesquisa clínica têm procurado
fundamentar cientificamente os pressupostos e
a prática clínica homeopática1 e, apesar do princípio de
cura homeopático pela similitude (paradoxical strategy
for treating chronic diseases) vir despertando interesses e
debates crescentes na racionalidade médica contemporânea,
2-5 causa estranheza ao pensamento cartesiano o
fato de as ultradiluições homeopáticas (em concentrações
inferiores ao número de Avogadro) produzirem sintomas
em organismos vivos, fazendo com que se comparem os
efeitos “inexplicáveis” ou “implausíveis” do tratamento
homeopático ao “efeito placebo”.
Alegando o intuito explícito de estudar a relação
dos efeitos clínicos do tratamento homeopático com oefeito placebo, acaba de ser publicado no The Lancet um
estudo comparativo entre ensaios clínicos homeopáticos
e alopáticos placebo-controlados.6 Pareando 110 ensaios
homeopáticos com 110 ensaios alopáticos, segundo as
mesmas doenças e os mesmos tipos de resultados (efeitos
específicos), os autores classificaram os estudos segundo
critérios de qualidade metodológica clássicos (número
de participantes envolvidos, método de randomização,
aplicação do método duplo-cego, tipo de publicação,
cálculo do odds ratio etc.), utilizando a meta-regressão
como método de análise estatística, avaliando como os
vícios ou erros sistemáticos (vieses) na condução e na
descrição dos estudos poderiam interferir na interpretação
final dos resultados.
Numa primeira análise geral de todos os ensaios clínicos
levantados, a maioria de baixa qualidade metodológica segundo
os critérios anteriormente citados, os autores observaram que
tanto a homeopatia como a alopatia mostraram-se efetivas
perante o placebo. Entretanto, quando os erros sistemáticos
foram valorizados, selecionando para análise apenas os “estudos
de maior qualidade metodológica clássica”, segundo o
critério de número de participantes envolvidos (oito ensaios
clínicos homeopáticos versus seis ensaios clínicos convencionais),
os resultados mostraram fraca evidência para um efeito
específico dos medicamentos homeopáticos (odds ratio, OR
= 0,88; 95% intervalo de confiança, CI = 0,65-1,19) e forte
evidência para efeitos específicos de intervenções convencionais
(OR = 0,58; 95% CI = 0,39-0,85). Partindo da premissa
que os efeitos específicos das ultradiluições homeopáticas
são “implausíveis”, pela dificuldade de explicá-los segundo
os parâmetros da pesquisa farmacológica dose-dependente,
os autores e comentaristas do trabalho concluíram que os
efeitos clínicos da homeopatia são efeitos placebo:
“We question the results of a randomised trial of homoeopathy
because we know that pharmacological action of infinite
dilutions is highly implausible. This reasoning is also the explicit
starting point of Shang and colleagues and their analyses only
gain meaning because of that background”.7
Como rege a epidemiologia clínica, nos estudos
que visam comparar a eficácia de racionalidades médicas
distintas como a homeopatia e a alopatia, os critérios
de qualidade metodológica específicos a cada modelo
devem constar como premissas fundamentais na sua
descrição e condução, a fim de que se reproduza, na
pesquisa, a realidade clínica. Dessa forma, os ensaios
clínicos homeopáticos deveriam priorizar como “critérios
de alta qualidade metodológica” as seguintes premissas:
individualização na escolha do medicamento (segundo a totalidade de sintomas característicos), das doses e das
potências homeopáticas; período de acompanhamento
suficiente para ajustar o medicamento à complexidade da
individualidade enferma; avaliação da resposta global e
dinâmica ao tratamento com a aplicação de questionários
de qualidade de vida (e não apenas o desaparecimento
momentâneo de um ou outro sintoma) etc.8,9
Na metanálise recém-publicada, esses “critérios
homeopáticos de alta qualidade metodológica” não foram
valorizados, pois apenas 16% dos ensaios clínicos
homeopáticos selecionados inicialmente (e nenhum dos
oito estudos de melhor qualidade metodológica clássica)
respeitavam a “individualização na escolha do medicamento”,
constituindo um viés ou erro sistemático de
grande magnitude para o modelo homeopático. A grande
maioria dos ensaios clínicos homeopáticos selecionados
apresentava desenhos impróprios à “clínica da individualidade”,
empregando um mesmo medicamento (44%) ou
uma mesma mistura de medicamentos (32%) para uma
queixa clínica comum a todos os pacientes.
Buscando descaracterizar a premissa da individualização
do medicamento (que requer estudos clínicos com
longo tempo de acompanhamento dos pacientes), reiterada
como “padrão ouro” ou “estado-da-arte” da epidemiologia
clínica homeopática em revisão sistemática sobre o tema,10
os autores da recente metanálise admitem que “avaliaram
esses pontos com análise adicional dos dados e não encontraram
forte evidência que confirmasse essas hipóteses”:*6
“não encontraram forte evidência” é diferente de “havia
uma fraca evidência”**, citado na conclusão final.
Tudo indica que esse artigo,6 enviesado segundo
as premissas do modelo homeopático, assim como o
editorial (The end of homoeopathy11) e outras duas matérias
críticas publicadas na mesma edição do The Lancet7,12,
apresentam o intuito implícito de desacreditar a homeopatia
cientificamente, em vista de a Organização
Mundial de Saúde (OMS) estar em vias de publicar um
dossiê completo sobre os trabalhos de pesquisa em homeopatia
desenvolvidos nas últimas décadas, que conclui
favoravelmente em prol da homeopatia.12
O interesse da população pela homeopatia vem
crescendo em todo o mundo, despertando as mais variadas
reações na classe médica,13,14 que espera respostas de pesquisadores
imparciais aos diversos questionamentos que
permeiam essa prática médica bissecular. Considerando
os pressupostos fundamentais a cada modelo, devemos
exercitar a criatividade na busca de modelos de pesquisa
clínica que reconciliem o paradigma científico dominante com o paradigma científico homeopático, suplantando
a cristalização dogmática que limita os horizontes do
conhecimento humano (“A razoabilidade da entrada de
um dado depende de quanto ele seja apoiado pelo fato
em questão e pelo conhecimento existente”***).7
Podemos dizer que a predição apocalíptica do
editorial do The Lancet (The end of homoeopathy11), segundo
as mesmas palavras dos editores, relaciona-se
ao fato de que “we see things not as they are, but as
we are”.
Marcus Zulian Teixeira. Médico homeopata e doutorando do Departamento de Clínica Médica
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
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