terça-feira, abril 18, 2006

Entrevista com o Dalai Lama


O Dalai Lama vem ao Brasil para 3 conferências em São Paulo. Abaixo, uma entrevista concedida à revista Época.

Entrevista- 'Não! Eu não sou Buda!'

Ivan Padilla, de Dharamsala



O Dalai Lama diz que, se a ciência provar que a reencarnação não é possível, os budistas aceitarão

O Dalai Lama ajeita o gravador no braço da cadeira, mais próximo de sua boca. Presta muita atenção às perguntas, começa a respondê-las em inglês, mas quase sempre desiste no final e acaba falando em tibetano. Um tradutor termina o serviço. No salão de audiências de sua residência, em Dharamsala, o maior líder do budismo falou a ÉPOCA.

ÉPOCA - O que um monge tibetano tem a dizer a um europeu, um americano, um brasileiro?
Dalai - Aonde quer que eu vá, onde quer que eu encontre as pessoas, falo sobre um assunto: todos queremos a felicidade. Uma vida feliz não depende somente do dinheiro ou da prosperidade material, mas sim do nosso pensamento. Tenho alguns amigos muito ricos, bilionários, mas como pessoas são muito infelizes, não têm paz interior. Estão sempre preocupados, preocupados, preocupados. E algumas pessoas muito pobres, com facilidades materiais muito limitadas, são, entretanto, pessoas muito felizes. Isso significa que a felicidade depende muito da atitude mental.

ÉPOCA - Somente da atitude mental?
Dalai - A felicidade e a paz interior dependem muito do calor do coração. A educação e a inteligência são muito importantes, mas esses fatores muitas vezes se tornam destrutivos e nos trazem mais preocupação, mais medo. Quando nascemos, precisamos de leite, contato físico materno e afeto materno. Sem isso não podemos sobreviver. Essa é a base da nossa sobrevivência e do nosso crescimento. Esses são os verdadeiros valores humanos.

ÉPOCA - Os valores humanos são diferentes para os ocidentais e os orientais?
Dalai - Não! Eles são universais! Ricos ou pobres, educados ou não, do Leste ou do Oeste, negros, brancos ou amarelos.

ÉPOCA - Mas os ocidentais e os orientais não valorizam coisas diferentes?
Dalai - Depois que crescemos. Daí é que passamos a considerar algumas coisas importantes: a riqueza ou a pobreza, ter instrução ou não. Isso é secundário. O mais importante são os valores humanos básicos. Freqüentemente consideramos de importância secundária os valores básicos. Por isso, enfrentamos a infelicidade e os problemas. Com motivação sincera, com compaixão e motivação, nosso comportamento se torna mais realista, mais positivo, e como resultado nossa vida fica mais feliz. Se há compaixão, há tolerância, satisfação, abertura, consciência profunda, capacidade de perdoar.

ÉPOCA - Não é difícil para pessoas que sofreram tanto com o desterro quanto vocês, tibetanos, ainda acreditar em valores humanos?
Dalai - Não. Em qualquer país, as pessoas das grandes cidades estão sempre muito ocupadas, há muita competição. Essa competição leva a uma sensação de solidão, gera muito egoísmo. As pessoas das grandes cidades têm menos compaixão. As pessoas das áreas rurais, das fazendas, das pequenas cidades têm mais senso de comunidade, a compaixão é mais forte. As pessoas são mais humanas, enquanto nas grandes cidades elas se tornam robôs.

ÉPOCA - Perguntei sobre os tibetanos porque vocês perderam parentes e amigos com a repressão chinesa. Não é difícil para vocês continuar a acreditar em valores humanos?
Dalai - A juventude que nasceu no Tibete tem uma atitude mais agressiva, pois cresceu em uma atmosfera de medo, de constante ameaça. Mas os tibetanos que moram na Índia são uma comunidade que ainda tem seus valores originais mais fortes. Eles podem falar mal a língua tibetana, mas a atmosfera aqui é mais parecida com a tibetana tradicional. Eles são mais gentis, têm mais compaixão.

ÉPOCA - O senhor defende a interação entre religião e ciência. Por que isso é importante?
Dalai - Alguns amigos já me disseram que a ciência é assassina da religião e me recomendaram que tivesse cuidado no trato com cientistas. Mas um dos princípios budistas é analisar, investigar. Se alguma descoberta vai contra nossas escrituras, temos a liberdade de ter uma interpretação diferente (das escrituras) ou de descartá-la. Também há o campo da psicologia. A psicologia budista parece mais avançada que a ocidental, pois está relacionada com as emoções. Meu interesse pelas ciências só cresce. Há cinco anos introduzimos estudo de ciências básicas para os monges.

ÉPOCA - Quais ciências?
Dalai - Física, Biologia, Química. Agora os monges aprendem também Matemática. Alguns monges não conseguem aprender, apenas decoram os nomes. O inglês deles é muito bom. Eles decoram muito bem (risos) e as suas mentes são muito aguçadas. Mas em nossa tradição a habilidade de fingir não é muito popular (risos).

ÉPOCA - Se a ciência provar que a reencarnação não é possível, o que o senhor dirá?
Dalai - Muitos anos atrás, nós, budistas, aceitamos que, se a ciência estiver um dia 100% certa disso, nós aceitaremos. Acho que os cientistas não estão se esforçando especialmente para saber isso. No método científico atual não se pode provar ou não a reencarnação. A fé na existência de outras vidas tem de ser baseada na crença ou na aceitação da consciência, o que é muito diferente das coisas físicas. A consciência, a mente, são muito amplas e não foram completamente exploradas pela ciência.

ÉPOCA - O senhor é a reencarnação de Buda?
Dalai - Não! Não sou Buda.

ÉPOCA - Mas isso é o que as pessoas falam, o que se lê por aí…
Dalai - Eu sou simplesmente um monge budista. Normalmente me descrevo como um ser humano normal, treinado nos ensinamentos budistas. Mas há diferentes ângulos de ver as coisas. São mistérios. Eu mesmo não tenho isso muito claro, não sei. Os lamas anteriores, até o nono, eram realmente extraordinários. Não como eu. Eles podem ser considerados como a reencarnação de Buda. Eu não sou sensacional.

ÉPOCA - Mas esse não é o princípio da escolha do Dalai Lama?
Dalai - Quando a questão é se eu sou ou não Dalai Lama, digo 'sim'. Ao longo destes anos espero ter provado que sou a verdadeira reencarnação dos dalai-lamas. Mas sinto que somos seres diferentes. Pelo menos o décimo Dalai Lama gostava muito de cavalos. Eu não gosto. Ao mesmo tempo ele gostava muito de relógios, e eu também gosto. Então, por esse ponto de vista, talvez eu seja mesmo o Dalai Lama. É um mistério.

ÉPOCA - As pessoas o vêem mais como um homem religioso ou um homem político?
Dalai - Acho que o mundo inteiro me vê como um homem religioso, mas nossos irmãos chineses me vêem como um homem político. Gasto 80% do meu tempo com a espiritualidade. E apenas 20% com questões políticas.

ÉPOCA - O senhor já afirmou que o budismo e o cristianismo apresentam semelhanças. Quais são?
Dalai - A fé, a crença e a oração são similares, assim como o sistema monástico. Há também a simplicidade, a devoção... há muitas similaridades. Mas no aspecto da filosofia há disparidades. Os muçulmanos têm somente um Deus, os cristãos têm a Trindade e os hindus têm muitos deuses. Então a pergunta é: por que as práticas apresentam essas diferenças? Porque há diferentes disposições mentais na humanidade. Então precisamos de diferentes métodos para levar essas práticas.

ÉPOCA - O senhor acredita que o fundamentalismo religioso é a maior causa de conflitos no mundo?
Dalai - Não acho que seja a principal fonte de conflitos. Eu acho que, num nível secundário, a fonte principal é a economia, o poder político, essas coisas. Num nível mais importante, o ódio, a ignorância, a raiva. Essas são as principais fontes. Então a religião se tornou parte disso, ou um instrumento. As religiões são usadas para interesses políticos e econômicos. Mas há um grupo de crentes genuínos. Eles acreditam apenas em uma religião, uma verdade, devido à falta de conhecimento de outros valores e de outras tradições, ao isolamento, ao nível de conhecimento. Eles são muito sinceros na fé que querem impor aos outros, que consideram descrentes, infiéis. Isso é antiquado, mas acontece entre os cristãos, os muçulmanos. Entre nós, talvez... (risos)

ÉPOCA - Qual é o objetivo da religião?
Dalai - Todas as religiões, desde as principais até as mais simples, como aquelas em que as pessoas adoram espíritos locais, rezam para o fogo, falam sobre os valores humanos. Através dos valores humanos, as pessoas ficam mais felizes, as famílias ficam mais felizes, as sociedades ficam mais felizes.

ÉPOCA - O senhor está preocupado com sua sucessão?
Dalai - De jeito nenhum. Como monge budista, o presente é que importa. Então devo utilizar minha presença da melhor maneira possível. Mas sei que para a nação tibetana o Dalai Lama é uma figura muito importante.

ÉPOCA - Por que o senhor não defende a independência completa do Tibete?
Dalai - Na nova realidade do mundo há muita interdependência, particularmente na economia. Veja a União Européia, a América Latina. Isso é uma necessidade. O Tibete é materialmente muito pobre e o mundo é muito grande. Não é de nosso interesse permanecermos independentes, isolados. Somos 6 milhões de pessoas numa grande área. Sem emoção, pensando nisso vejo algumas razões pelas quais devemos permanecer com a China. Podemos ter grandes benefícios, desde que a autonomia desses 6 milhões de pessoas seja preservada. É por isso que defendo a autonomia do território.

ÉPOCA - Os tibetanos estão de acordo?
Dalai - Não. Eles querem a completa independência. Sempre discuto isso com eles. Eles me respeitam, mas quanto ao ponto de vista político são muito críticos.

ÉPOCA - O senhor está confiante no futuro do Tibete?
Dalai - Sim. Quando olhamos de uma perspectiva mais ampla, há muita esperança.

ÉPOCA - O senhor ainda gosta de consertar relógios?
Dalai - Pequenos relógios não, mas os grandes, sim.

ÉPOCA - O senhor diz em sua autobiografia que os monges devem obedecer a 253 regras. O senhor pode me dar um exemplo de uma regra estranha ou engraçada?
Dalai - Não são regras engraçadas! São pequenas coisas. Por exemplo, quando a gente come não deve fazer barulho, nem deve fazer assim (passa a língua nos lábios). E nem fazer assim com a boca depois de comer (faz barulho de quem gostou). Acho que no tempo de Buda alguns monges eram mal- educados, então ele escreveu essas regras (risos). Na verdade, essas regras foram criadas porque Buda percebeu que certas ações traziam descontentamento.

ÉPOCA - Para quem o senhor vai torcer na próxima Copa do Mundo?
Dalai - Não ligo para isso. Mas nós desejamos que todos os perdedores sejam os vencedores. Algumas vezes perco a paciência com os vencedores.

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