terça-feira, janeiro 02, 2007

A Letra como Semente

A revista Globo Rural de Dezembro de 2006 apresentou uma reportagem sobre escolas rurais que estão revolucionando o ensino no interior do país.

A educação urbana sempre serviu de modelo à rural, apesar das diferenças entre um mundo e outro. No campo, as deficiências do ensino oficial são agravadas pela ausência de profissionais especializados, infraestrutura precária e dificuldade de transporte, prejudicando 7,6 milhões de estudantes em 96 mil escolas espalhadas pelo país, nas mais diversas modalidades de ensino básico. Mas uma experiência desenvolvida em Araraquara, SP, põe por terra os obstáculos, atraindo a atenção de
municípios vizinhos, do governo federal e até de uma instituição ligada à Universidade de Harvard, dos EUA. Pés na grama, os alunos aprendem - e se divertem - em meio a regadores e muita terra marcando as camisetas.
Com atenção e paciência, os educadores tecem um modelo pedagógico que respeita o saber da criança e valoriza a cultura do homem do campo, sem perder de vista o conteúdo disciplinar tradicional. Munida de mochila cor-de-rosa e cadernos
impecáveis, Mirian Arantes de Souza, 12 anos, revela por trás do sorriso tímido a boa aluna que é. Quando fala sobre o que gosta de estudar, elenca quase todas as disciplinas. "Vou bem até em ciências, embora esta matéria não me agrade muito", diz. A menina se sobressai entre os jovens de sua idade pela polidez ao falar. Respeita o plural, usa palavras sofisticadas. Poderia ser estudante de qualquer grande cidade, mas seu mundo é a comunidade rural Monte Alegre, em Araraquara, a 273 quilômetros da capital paulista. Às cinco e meia da manhã, Mirian já está de pé e, depois do banho e do cafezinho, caminha um quilômetro para então entrar na rota do ônibus que a conduz à escola, onde chega mais de uma hora depois. Diferente do
pai, pedreiro e agricultor, e da mãe, dona-de-casa, que não tiveram a oportunidade de completar os estudos, a garota quer vingar. A vontade crescente que tem de ser professora é semeada pelos profissionais da escola Profª. Maria de Lourdes da Silva Prado. A instituição, parte de um projeto municipal que revitalizou as entidades de
ensino rural da região, incentiva os alunos a cultivar o gosto pelo conhecimento e pela terra.

Mirian, a caminho da escola, aperta o passo para não chegar atrasada na aula

Em 2001, um grupo de educadores local elaborou uma nova proposta pedagógica para o ensino no campo, sugerindo, inclusive, a ampliação do atendimento até a 8a série (antes restrita à 4a série), na tentativa de evitar problemas como abandono, altos índices de repetência e choques culturais. Isso porque, sem opções no meio rural, as crianças eram obrigadas a acordar no meio da madrugada e seguir para as escolas da cidade. "Estes alunos estavam desmotivados, não se sentiam nem no campo, nem da cidade", diz Carlos Alberto Pereira, coordenador de desenvolvimento pedagógico da Secretaria de Educação de Araraquara. Diferente do que ocorria no passado, a idéia era que a escola fosse até os jovens, fazendo-os resgatar a identidade cultural de suas famílias. Sensibilizada pela proposta, a prefeitura decidiu investir no que passou a se chamar "Programa Escola do Campo", em funcionamento desde 2003.
O projeto, dividido em três ciclos de formação, atende crianças de seis a 14 anos e saiu um passo a frente ao decidir que o ensino fundamental tivesse nove anos,
mudança que virou lei no país somente este ano. Em nível nacional, foi apenas em 2004 que o governo decidiu pela criação da Secad - Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade - para refletir sobre uma política educacional para o campo. Hoje, via ONGs e prefeituras, a Secad viabiliza programas para a formação continuada de professores do meio rural e para a elevação da escolaridade de jovens e adultos, por meio do projeto "Saberes da Terra".

Os jovens podem estudar e lanchar ao ar livre nas escolas do campo de Araraquara, SP

Os alunos das escolas do campo de Araraquara trabalham todas as disciplinas obrigatórias da educação fundamental, mas cada professor relaciona o conteúdo
curricular à realidade rural. Durante a aula de ciências, a educadora Cristiane
Carusi da Silva, em uma plantação de couve, explica as características da planta e como ela é importante para regular o intestino humano. Subitamente, uma aluna a
interrompe. "Posso pegar uma para comer?". Liberação concedida, Renata de Souza Paula mata a vontade com uma folha fresquinha e devidamente lavada. A menina de 12 anos não se encanta apenas com a horta da escola. Junto com a avó, com quem mora, mantém o seu próprio cultivo, e fala com propriedade do mercado agrícola, discorrendo sobre a queda do milho e do chuchu, fator pelo qual a família passou a investir em manga e banana. Junto aos colegas de turma, Renata acaba trocando conhecimento com os professores e aprendendo muito mais do que lidar com a terra, já que o entrelaçamento das disciplinas é constante. Se em um momento as
crianças estão discutindo a estrutura de um vegetal na horta, no instante seguinte riscam o terreno para fazer futuros plantios, habituando-se às formas geométricas. Quando nasce a curiosidade sobre a origem de uma planta ou sua grafia correta, correm para consultar os livros na biblioteca e pronto: toparam com a lição de português.

Cristiane, professora de ciências, dá aula em meio à plantação de couve

Ao lado das matérias tradicionais, as atividades na cozinha experimental arrematam a ligação escola-campo. Entre panelas e fornos, os jovens entendem como agregar valor ao que a família já produz. "Eles aprendem a fazer queijo temperado, por exemplo, que vai ajudar os pais a garantir melhor renda do que o produto comum, ao mesmo tempo em que compreendem as reações físico-químicas do processo", diz Alexandre
Martins de Freitas, à época membro da secretaria de educação do município e um dos cabeças do projeto.

Na cozinha experimental, os alunos fazem fila para participar do preparo de uma salada de frutas

Um dos pontos importantes do projeto é o envolvimento da comunidade no cotidiano de ensino. No entanto, segundo Dirce Zaccaro, diretora da escola da comunidade de Monte Alegre, isto é dificultado pelas longas distâncias que separam os lotes da
instituição, o que não acontece no assentamento Bela Vista, onde também o programa está implantado. Lá, a Escola do Campo Hermínio Pagôtto tem uma agrovila à sua volta, e é comum que os educadores utilizem as instalações dos vizinhos, seja um viveiro de aves ou um curral, como salas de aula. No Bela Vista, multiplicam-se antenas parabólicas e as casas, tingidas de barro e descascadas pela ação do tempo,
contrastam com o asseio e a ordem da escola. Os horários de alimentação são seguidos à risca. Durante a merenda, as crianças correm ávidas para degustar o menu do dia: arroz, feijão, salsicha e salada de tomate, preparado com esmero pela cozinheira Claudete Francisco da Silva, enquanto dois ou três passarinhos cruzam aos saltaricos o corredor do refeitório. No centro das mesas compridas estão vasos repletos de girassóis. "Símbolo de vitalidade e energia", afirma a diretora Adriana Morales Caravieri, exemplo do típico acanhamento interiorano e dona de uma ternura contagiante. Quem também esbanja vitalidade e energia é Wiltemberg Almeida de Souza, dez anos, sempre acompanhado dos primos, Denner e David. A família dos três meninos chegou há cerca de 15 anos na região e conquistou um terreno de 15 hectares no lote, onde passou a plantar milho, feijão e, mais recentemente, cana-de-açúcar e criar gado. Embora tenham intimidade com a área rural, os garotos planejam rumar para cidade. "Lá deve ser mais divertido", afirma David, com a conhecida objetividade
das crianças. Como o ímpeto migratório ainda é uma realidade, o grande desafio dos educadores é dar ferramentas para que os jovens possam levar uma vida digna na cidade, caso não queiram ou não possam permanecer em seus lugares de origem, ao mesmo tempo em que os façam entender o valor da terra. Nesta prova, o Programa
Escola do Campo parece estar se saindo bem: a evasão escolar é praticamente zero. Também o desempenho nas olimpíadas escolares, com a conquista de algumas medalhas, e a qualidade das notas são animadores. No Saresp - Sistema de Avaliação de Rendimento
Escolar do Estado de São Paulo - de 2005, as escolas que compõem o projeto alcançaram cerca de 40% de acertos em matemática e 60% em português. Todo o empenho dos professores foi coroado com a conquista do Prêmio Chopin Tavares de Lima: Novas Práticas de Gestão Municipal, e o Prêmio Gestão Pública e Cidadania, dado pela FGV - Fundação Getúlio Vargas - e a Fundação Ford, com apoio do BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Foram, inclusive, convidados a apresentar a experiência em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, em um workshop realizado pelo Ash
Institute, da John F. Kennedy School, pertencente à Universidade de Harvard, dos EUA.
Para Adriana, diretora da Hermínio Pagôtto, a escola deve ensinar o valor da terra.
Para Antônio Marangon, coordenador geral de educação do campo da Secad/MEC, é louvável a iniciativa do município de Araraquara. "Este e inúmeros outros projetos de educação, antes isolados, estão vindo à tona e servem de modelo e inspiração para que um programa de ensino rural seja implantado no país inteiro", diz.
Aos poucos, o projeto paulista se multiplica. Na cidade de Matão, perto de Araraquara, Alexandre assumiu a Secretaria de Educação e Cultura e costura agora a implantação do programa no município.
Para os que iniciam a caminhada, a diretora Adriana não esconde o jogo. No mural situado na entrada da Hermínio Pagôtto, revela a todos, tomando de empréstimo uma frase do educador Paulo Freire, o conceito-chave que descortina o futuro a seus alunos: Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo. As pessoas se educam entre si, mediatizadas pelo mundo.
Estudantes cuidam dos canteiros de flores

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